Ao meu mestre nada imaginário, Waldomiro Autran Dourado, grande aranha tecedeira

O premiado escritor mineiro Autran Dourado, como todos sabemos, nasceu em Patos de Minas em 18 de janeiro de 1926, tendo passado sua infância nas cidades de Monte Santo e São Sebastião do Paraíso. Formou-se em direito, em Belo Horizonte, e em 1954 veio para o Rio, de onde não mais saiu. Foi secretário de imprensa de Juscelino, entre 1955 e 1960, período em que teve uma grande crise existencial, física e intelectual, porque o que gostava mesmo era de escrever.

Conceber sagas e fábulas. Riscar bordados, armar jogos, tecer histórias, construir mitos e cosmogonias com emoção, paixão, nervos, vísceras e memória. Mas também consciência, ordenação cartesiana dos dados ou das cartas de seu tarot mágico. Oscilando sempre entre a enxurrada de palavras visionárias de um Antonin Artaud e a escolha dos verbos, substantivos e adjetivos exatos. Mais símbolos do que signos.

Foi árdua a missão que escolheu para sua existência, num país em que são poucos, muito poucos, ainda, os escritores profissionais. Aqueles que não temem se entregar à escrita, cotidianamente, de forma tão vertiginosa e abissal que chegam a sentir a alma se aproximar, a cada instante de sua tessitura literária, da morte, como se tivessem feito um pacto com Mefistófeles. É doce, e amargo, viver e morrer na palavra. Muito difícil e perigoso ser artista a quaisquer custos, sofrendo na pele, e na mente, os tormentos da criação. Com a alma em fogo.

Sua primeira novela, Teia, data de 1947, e seu primeiro romance, passado em Cercado Velho, Tempo de amar, uma pequena, mas já diamantina obra-prima, foi publicado em 1952. De lá para cá, Autran Dourado, para felicidade de todos nós, seus leitores, edificou uma obra de mais de trinta livros, constituída por romances, novelas, e ensaios. Construção requintada de habilidoso arquiteto ou aranha tecedeira, criadora de uma mítica cidade, Duas Pontes, onde o pecado morava no Bordel da Ponte, e o sexo proibido, incestuoso, assombrava as moradas de classe média. Seus romances abrem crateras em nosso imaginário, rodamoinhos ou labirintos nos quais entramos e dos quais saímos abismados, com as chaves de Dédalo a queimarem nossas mãos e as asas aladas de Ícaro. Porque sempre que entramos nos casarões e sobrados de Autran Dourado sentimos nosso cérebro se esbrasear como se nos aproximássemos do sol. Se não do sol, ou rosto de Deus, pelo menos do ouro cegante de uma igreja barroca, com seus santos e virgens de pau oco. Com luzes e escuridões, claros e escuros, volutas, curvas, frisos e redondezas, mistérios e clarividências. Sim, saímos de seus castelos oníricos, ao mesmo tempo tão reais, encharcados de sonhos, miragens e visões. Os sonhos viscosos de seus personagens, embriagados de desejos pecaminosos, perdidos em eternas buscas de identidade, enrodilhados como caramujos em conchas nacaradas cheias de sentimentos de fuga e culpa, mergulhos no passado, saltos para o futuro. Édipos ou Orfeus cegos que caminham entre névoas e nebulosidades, às vezes atingindo êxtases nirvânicos, ao trazerem de volta à vida suas Eurídices, Medeias, Antigonas e Jocastas encantadas, enterradas na areia da memória.

Ah, os personagens. Quem um dia provou da romã de Autran Dourado não quer numa mais abandonar seus infernos, muito menos seus paraísos de anjos caídos. Não basta uma só leitura. Se alguém quiser conhecer realmente o intricado tecido da aranha bordadeira mineira, é bom voltar mais de uma vez a seus textos. Porque ele mesmo, o autor, não gosta dos leitores dinâmicos, prefere aqueles que voltam, retornam. Fazendo-se perguntas sobre seu processo de criação. Descobrindo em cada uma de suas casas, fazendas, cercados, cidadezinhas interioranas e abafadas, novas janelas e porteiras. Novos caleidoscópios de imagens e metáforas. Sensações, palavras, oxímoros, antíteses, construções barrocas refinadas. Pois nada é gratuito em Autran. Escrever, para ele, exige tempo, engenho, arte, talento, é claro, mas também técnica, trabalho, muito trabalho. E se ele tanto trabalhou para nos legar livros tão maravilhosos, também exige de nós um pouquinho mais de atenção ao entrarmos em seus templos de Apolo e Dionísio, suas tapeçarias, naves iluminadas por vitrais, a fim de roubarmos para nossos corações as estrelas que ele buscou no céu para internalizar em seu peito. Seu cofre, seu tesouro, ou seja, seus livros, os romances, as novelas, os contos, os ensaios interpretativos. Para quem nos doa constelações e mitos, tão generosamente, é preciso uma lente ou telescópio, mais do que apenas o olho nu, na leitura. Só assim veremos nitidamente todos os signos do zodíaco, todos os heróis e semi-heróis gregos, que ele nos presenteia, a cada página que viramos. A cada entrada em seu coração de mineiro que um dia teve todo o ouro do mundo, e o perdeu. Mas o desenterrou de novo para nós, diligentemente. Como um duende ou gnomo que nos leva, por meio de um fio de bandeirinhas coloridas, aqueles fios de quermesses de São João, ao final do arco-íris, aquele arco-íris das fadas e dos duendes que esconde na sua ponta multicolorida, prismática, um pote com lingotes de ouro, de ofuscar olhos incautos, desprotegidos.

Eu não poderia mais viver, juro, após ler Autran Dourado, sem seu alter João da Fonseca Nogueira, ou Rosalina, Juca Passarinho, Quinina, Malvina, Gaspar, Januário, Paula, Ismael, Ursulina, Tarsila, Fortunato, Maria, Godofredo, Tenente Fonseca, Amadeu, Domício, tio Zózimo, tia Margarida, vovô Tomé, vovó Naninha, tio Maximino, vovó Pequitita, o velho Zé Mariano, Honório Cota, a barca Madalena, o pescador Tonho, para citar apenas alguns dos atores de seu grande teatro do mundo. Sua ópera de vivos e mortos, fantoches ou mortos-vivos. Eles sempre existirão dentro de mim, com suas vidas trágicas, doídas. Seus sonhos, seu sangue grosso, que berra nas veias. Suas perversões, desejos incestuosos. Ou apenas o desejo de um dia partir, fugir, arrancar com força de Hércules ou Aquiles as pernas enterradas nas areias movediças da adolescência e ir em busca do mundão, em busca da visão do mar, ou da cidade grande. À procura talvez infrutífera de alguma glória mundana, a fim de ficar distante, bem distante, das feridas e chagas abertas nas relações familiares. Ou apenas em busca da liberdade. Íntima libertação dos retratos pendurados na parede, ou colados em álbuns, cujos cheiros, formas, perfumes, idiossincrasias, manias, jeitos e trejeitos, nos sufocam, prendem à infância. Crescer, ser adulto, decifrando, na dança dos signos, os primeiros anos, os formadores de todas as emoções e traumas.

Cada um de nós tem sua experiência com um autor de predileção. Vou narrar aqui, um pouquinho, só um pouquinho, não se assustem, a minha própria experiência, já que este texto não pretende ser, longe disso, uma tese de mestrado. Estamos apenas fazendo, isso sim, uma homenagem muito da merecida à grandeza de Autran, nos 85 anos de idade, recém-completados, justamente no aniversário de 75 anos de criação do PEN Clube brasileiro, entidade do qual ele é membro há muitos anos.

No início dos anos 70, quando eu tinha 19 anos, entrei para a Faculdade de Letras da UFRJ, que ficava ainda na Avenida Chile. O que menos me aconteceu na Faculdade de Letras foi ler livros. Lia-se, muito mal, trechos de teoria. Estávamos no auge da moda do estruturalismo. Um estruturalismo importado da França, mal lido, mal interpretado. As biografias eram proibidas. Assim como eram proibidas as análises feitas pelos próprios escritores de suas obras ou das obras dos escritores que amavam. Mesmo assim, me mandaram ler um livro de Autran Dourado. Um só livro, que pode ter sido O risco do bordado ou A barca dos homens. E eu senti um gosto diferente na boca. E na alma. Um gosto de grande obra. O que ficou na minha memória, principalmente, eram os sonhos ou fluxos de consciência dos personagens. Os monólogos internos ou interiores, que se cruzaram com as descrições do que poderiam ser os acontecimentos reais. Ou seja, havia os fatos, os acontecimentos, e os pensamentos. Os devaneios, os delírios, os desvarios. As rememorações. Os mergulhos no passado. As loucuras. Os pesadelos. As visões introspectivas.

Uma outra imagem que ficou em minha cabeça, uma imagem física ou gráfica, do livro, é a de que essas passagens interiorizadas estavam em itálico, diferenciando a realidade ficcional do devaneio ou sonho. Muitos anos mais tarde, quando escrevi meu primeiro romance, eu usei o itálico, ao entremear minha história "real" de quatro mulheres, morando num casarão-sobrado em Ipanema, com uma delirante história imaginária, uma fábula. Fiz isso pensando em Autran Dourado, meio que inconscientemente. Hoje, eu procuro este itálico, nas obras que leio de Autran, e não encontro mais, será que inventei? Não importa, importa que aquele livro, aquele único livro de autor brasileiro lido na faculdade me marcou para sempre. Assim como me marcou o livro de um outro autor mineiro, que fala de ruínas de um casarão, desejos perversos, extremados, dostoievskianos, rios subterrâneos que correm nos relacionamentos humanos, ou seja, Crônica de uma casa assassinada, de Lúcio Cardoso.

Foi em função desta minha primeira experiência que, ao voltar para a faculdade, no ano passado, entre as primeiras aulas que escolhi para frequentar, selecionei justamente um curso sobre Autran Dourado, ministrado pelo professor Ronaldes de Mello e Souza. O excesso de interpretações de Ronaldes, de início, me irritou um pouco. Não está mais em moda na faculdade o estruturalismo. Hoje em dia os estudos literários estão impregnados de filosofia. Metafísica, ontologia, e até mesmo física. Mas a irritação inicial foi passando porque Ronaldes fez o que não tinham feito antes, ou seja, há 40 anos, em minha primeira estada na Faculdade de Letras. Obrigou os alunos a ler inúmeros livros de Autran Dourado, quase que um a cada duas semanas, ao longo do semestre. E com isso sou muito agradecida a ele. Pois foi assim que li todas as novelas iniciais, e também os grandes livros de Autran, seus labirintos dedalianos. Caí numa voçoroca, de cabeça. Dentro da gruta do duende, lá onde fica o magma da terra. Fiquei presa numa imensa teia de aranha, pegajosa, perigosa, de tirar o fôlego, mas intensamente prazerosa. Sobretudo os fios perolados, as estalactites ou teias chamadas Tempo de amar, O risco do bordado, Os sinos da agonia e Ópera dos mortos, fizeram-me ter verdadeiros êxtases literários. Há muito tempo eu não lia nada tão bom. Cada palavra em seu lugar, fazendo-nos vibrar como sinos. Sem contenção de sons. Luxuriosos jogos de armar. E novamente, como havia acontecido nos anos 70, mergulhei em sonhos.

Sim, sonhos, há sempre sonhos em Autran. Seus personagens têm visões antes de dormir, dormindo, em vigílias, insônias, semiacordados ou saindo do sono. Como Proust, No caminho de Swan, que não sabe se ainda está sonhando, ao acordar, ou se sua retina ainda se encontra embriagada pelas imagens do livro que leu, antes de naufragar no sono, ou pelas memórias que os sonhos acenderam dentro de seu cérebro. Ismael sonha e vê imagens na névoa, antes da luz chegar à janela. Sonha com seus antepassados. Não sabe se está sonhando ou se está vivendo a realidade, quando começa a abrir os olhos, deixar o dia entrar em sua retina. Paula sonha, à luz do abajur, em seu quarto, ao ler Madame Bovary, sonha com Ismael, o encontro na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, sonha em ir embora de Cercado Velho. Os filhos de Maria sonham, ao serem colocados para dormir por Luiza. Malvina sonha com o corpo branco de Gaspar, que deseja loucamente. Juca Passarinho sonha com o corpo de Rosalina, a mulher recatada que à noite virava uma amante desvairada. João Fonseca sonha com o passado e com futuro, a casa do avô, a fazenda, o colégio... as primeiras visões de mulheres nuas. Os olhos virados para dentro.

Sim, o principal fio dos bordados tecidos por Autran Dourado é o sonho, um sonho esgarçado, prolongado, que vira romance, novela, histórias de Scherezade. E que pode dar prazer ou encher de terror, medo, pânico, de demências, coisas proibidas, corpos em brasa, mortes, suicídios, infanticídios. E lá estavam de novo os devaneios, os monólogos interiores. As palavras que puxam palavras. Autran Dourado não tem medo da palavra. Elas vêm aos borbotões, numa sucessão de imagens extremamente poéticas, imagens que são metáforas. Símbolos. E também não tem medo do prosaico, do lugar-comum. Nunca é preciosista. É barroco, mas não é gongórico, rococó. Não há excessos em suas palavras. Há apenas a falta de temor quanto ao uso de significantes e significados, um intenso amor pela língua portuguesa. Como ele mesmo diz, não está preocupado em enxugar seus textos até o osso, ressacá-los. Seus textos são marítimos. Úmidos como sexo de mulher oferecida. Uterinos. Por isso seus livros nos dão vertigens. Por isso com eles vamos ao fundo de ribeirões, o ribeirão que engoliu Ursulina, e também nos alçamos às estrelas, aquelas estrelas que perderam Paula e Ismael, com seu brilho ofuscante, seu sortilégio antigo, atemporal.

Teseu e Ariadne: Afresco em Pompeia, ItáliaCada um tem sua predileção. Eu tenho a minha. Como Autran, sou louca por mitologia, Ilíada, Odisséia, e pela maldição dos Atridas. Por isso, apesar de gostar muito dos relógios estagnados em Ópera dos mortos, do tempo parado, cristalizado no passado, das flores artificiais e dos rituais fúnebres de Rosalina, tenho um carinho especial por Os sinos da agonia. Acho muita coragem a de Autran de ter recriado, na Vila Rica do século XVIII, a história de Teseu, Fedra e Hipólito. A sua história do louco, desenfreado desejo da madrasta pelo enteado, com uma outra história muito mineira dentro, a da morte em efígie. Todos já estavam fadados a morrer deste o início do livro. Um livro que faz citações gregas sem parar. Recriando Pasifae, a filha de Hélios, Minos, o Minotauro, os perseguidos por Vênus. Amar é ser maldito, em Os sinos da agonia. É ter que matar o obscuro minotauro do desejo ou da volúpia, e ser morto por ele.

Autran adora a imagem do labirinto. Escreveu sem parar sobre labirintos e monstros, jovens ainda imberbes entregues à sanha do monstro, o incontrolável, insaciável monstro do sexo. Teseus mineiros que para sobreviverem precisam do fio de Ariadne. E do fio da literatura. O da recriação de mitos. Falando em labirintos e mitos, mitologias e cosmogonias, uma outra coisa a qual sou agradecida a meu curso sobre a obra de Autran, ministrado por Ronaldes, foi a leitura dos livros teóricos, sobretudo de Poética de romance – matéria de capintaria. Assim como Autran gosta da imagem da aranha tecedeira, ele gosta muito do carpina, do carpinteiro, o que entalha rostos, santos, constrói esculturas em madeira. Faz casas, mas também faz Virgens, Pietà(s). Com o escritor, o artista, para ele, também sendo um trabalhador manual ou braçal. Dono da arte de Aleijadinho. Lembremos que a fazenda do Vovó Tomé se chamava Fazenda do Carapina, que pode ser pica-pau, mas também é carpinteiro.

Por que gosto da Poética de romance? É claro, porque nele Autran nos conta alguns de seus segredos, revelando que seu trabalho não é apenas um fruto de inspiração. Há inspiração, sim. Há uma visão ou insight, até mesmo um sonho, antes de ele começar a conceber um livro. Fica com a ideia na cabeça, pesquisando, matutando. Mas há também trabalho de ordenação dos fatos narrados. Montagem de blocos. E mais do que isso, porque neste livro, extremamente necessário para entendermos o que se passou na cabeça de Autran ao criar seus romances, ele remarca que a teoria que lhe interessa, a única que importa, é a que foi exposta pelos próprios escritores. Ninguém melhor do que um poeta, diz Autran, para falar sobre poesia. E ninguém melhor do que os escritores para nos falarem ou dar ensinamentos sobre a arte de conceber livros, como se construíssem labirintos, jardins secretos ou igrejas barrocas. Autran não renega a teoria, longe disso, mas coloca em primeiro lugar a análise literária dos próprios escritores. A de Edgard Allan Poe, a de Henry James, a de Goethe, a de Flaubert, Gide, a de Thomas Mann. Existe livrinho mais essencial para se entender o magistral Doutor Fausto de Mann do que A gênese de Doutor Fausto? Claro que não. É com os escritores que nós devemos aprender a escrever, todos aqueles que nos antecederam, desde Homero. E com os livros ou diários que escreveram sobre suas obras, suas preocupações literárias. E mais do que tudo com suas próprias obras. Seus romances, contos e novelas, para quem quer ser um prosador.

E aí está outra frase de Autran que considero lapidar. É lendo que se aprende escrever. Um bom leitor, comenta ele na Poética, acabará um dia querendo escrever seu próprio livro. De tanto ler vai querer criar. Ser Deus, momentaneamente.

A respeito dos segredos do Autran, e de suas revelações, há um segredo que quero partilhar com vocês. Quando ele descreve a trabalhosa elaboração do O risco do bordado, suas reescrituras iniciais, a mudança de ordem nos blocos, a passagem da terceira pessoa para a primeira pessoa, e vice-versa, faz uma afirmação que no fundo é uma confissão. A de que o ponto nodal deste livro de formação, sua Educação Sentimental ou Retrato de um Artista quando Jovem, ou seja, a tônica ou clímax do livro, não se encontra nos últimos capítulos, sobre as várias faces ou máscaras de Xambá, mas, sim, em O Salto do Touro. Sempre o Touro, o monstro que ele quer laçar, domar, matar, e assim se libertar do passado. Voar. Ser o arquiteto de si mesmo, deixando o lodaçal de lembranças, as voçorocas do passado, que podem nos engolir vivos, caso não tomemos cuidado.

Diante desta afirmação, eu, que já tinha relido o capítulo de Valentina e o de Teresinha Virado, passagens preferidas deste livro memorável – existe cena mais maravilhosa do que a de João calçando o sapato em Teresinha e recebendo um afago na cabeça da mulher que endoidecia seus sonhos? – voltei ao O risco do bordado. E reli O Salto do Touro. Maravilha das maravilhas: lá está toda a chave da grande culpa ou dor de João-Autran. E de sua redenção ou ressurreição pela literatura. Porque só a literatura nos liberta das dores do passado. A literatura e a psicanálise, é claro. Só que literatura é arte. Psicanálise mexe também com nossos demônios, sonhos, fluxos de consciência, culpas, mas não cria livros. Ela nos cura, mas não cria estes objetos adoráveis, insubstituíveis, que ainda por cima podem ser imortais, cheios de beleza, som e fúria, sobretudo quando espelham a alma humana. O universo que mora dentro de nós. Nossas estrelas, sol e lua.

A literatura, por outro lado, antecipou a psicanálise. A literatura e a filosofia, sobretudo Schopenhauer, que presenteou Freud com a noção de vontade, desejo... Proust, é claro, se autoanalisou ao escrever sua imensa Recherche, curou suas dores infantis e adultas... Mas estou indo para outro lado, e o lado que me importa é o salto do Touro, um touro que no caso se chama Autran Dourado, ele mesmo Dédalo, construtor de labirintos, ele mesmo Teseu, matador do Minotauro, e também Touro, fruto do pecado de Pasifae, com lados selvagens, primitivos, monstruosos, dentro de si. Ou apenas mineiramente pecaminosos.

"Já se afundava nas névoas mornas do sono (dormente, esquecido, apagado na macieza das sensações), quando teve, num esforço terrível, num último alento, de voltar à tona; o roupão vermelho envolvia não o corpo de Teresinha Virado, mas aquela nudez branca e molhada, os seios como duas verrumas de dor – a mãe saindo do banho.

Se não era possível substituir a imagem nua e dolorosa da mãe nem pelo mito nem pela lembrança real de Teresinha Virado, aceitava como um castigo inevitável, um pecado menor, a lembrança naquela noite na casa do vovô Tomé. E todo ele se entregava às mais quentes sensações, deixava-se fundir na carne ardente, no quentume cheiroso, na respiração de tia Margarida.

Na lógica terrível dos sonhos ele se salvava e se perdia: era não apenas um dos sete jovens sacrificados pelo touro mas o próprio Minotauro, um touro virgem que mugia solitário no seu negro e sanguinolento labirinto." (in O risco do bordado, cap. O Salto do Touro)

O que há em O Salto do Touro, afinal? Voltem lá, voltem lá e verão. Um dia Autran Dourado desejou Teresinha, a moça do bordel de Duas Pontes. E um dia, ainda muito mais pecaminoso, desejou a tia Margarida... Mas o pior, muito pior, é que um dia desejou a própria mãe. E se sentiu culpado. Terezinha, a prostituta, e a mãe de João, Gilda, se fundiram em seus sonhos, devaneios noturnos. Estimularam suas masturbações de adolescente... Com negligés ou roupões de seda, cobertos de ramagens. Ou nuas, em pelo, saindo do banho. E o remorso, o pecado, o levou a fazer confissões à Stavroguine, em longas, doloridas narrativas, para nossa bem-aventurança. Pois esta culpa inicial, primordial, é que foi o motor de toda uma literatura riquíssima em símbolos e imagens. Uma literatura tão rica e mágica que é óbvio que Autran há muito tempo está perdoado, por todos os deuses e musas, gregos ou cristãos, por seu sentimento edipiano. Ao roubar o fogo dos deuses, o dom da palavra, ele se tornou Zeus, Plutão, Netuno, Prometeu, Teseu, e fez-se divino, eterno em suas palavras. Sua Medusa ficou congelada. Seu livro é seu Pégaso. Seu voo para o paraíso de Beatriz.

Sim, é claro que Autran está perdoado. Só não o perdoo por ter reescrito Tempo de amar quando estava com cerca de 70 anos, criando a Ópera dos fantoches. E assim cometendo o erro que ele mesmo disse ter sido mortal no caso de Ciro dos Anjos e do Amanuense Belmiro. Não devemos nunca reescrever obras iniciais, mexendo com forças telúricas, viscerais, as da juventude ou início da maturidade literária. Principalmente quando este livro se chama Tempo de amar, o romance abriu o caminho, a trilha ou via-crúcis, e que fez Autran Dourado ser o escritor consagrado que é hoje. Sua pedra de toque ou varinha de condão.

Digo que não perdoo Autran, mas é claro que perdoo. Autran pode até mesmo errar, transformar a Paula libertária e sonhadora numa doida prostituta, homenageando a paixão do príncipe Michkin. Para ele, tudo é permitido. Com Deus ou sem Deus. Pois sou devota de seu fogo. Sento-me com ele, à beira da fogueira, para ouvir suas fábulas e histórias. Morrer e reviver na palavra. E um dia, juro, quero fazer um livro com tanta consciência como ele tinha e tem do fazer literário. Um livro com fogo e ar, água e terra. Um mito. Um símbolo. Uma barca de estrelas a velejar no céu dos homens. E dos deuses.

Cecilia Costa Junqueira

Jornalista e escritora

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